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O “Orgulho Hetero” deveria nos encher de vergonha

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Mônica Saldanha estreia como colunista do Pimentaria

A mulher na foto ao lado é Mônica Saldanha. Sald, para os íntimos. E é assim que vocês poderão chamá-la a partir de hoje: ela estreia como colunista do Pimentaria. Formada em letras, 24 anos, tamanho tampinha, mas um belo sapatão. Sald é lésbica (aaaaaah, jura, Nath? rs), inteligentíssima, uma figura super divertida. Sim, já tem namorada. Tenho o maior orgulho de fazer pós-graduação com ela, que vai trazer seu olhar aguçado principalmente sobre gênero e direitos sexuais. Eu não teria escrito melhor a respeito da Marcha do Orgulho Hétero…

*TEXTO DE MÔNICA SALDANHA

A palavra Orgulho tem dois significados básicos, um positivo e outro negativo. O negativo refere-se à exagerada estima por si mesmo (também conhecida como soberba). O positivo refere-se à satisfação pessoal pela conquista de algo. Orgulho, neste sentido, é o oposto de Vergonha, esse sentimento de desonra, ridicularização, humilhação, perda de dignidade. Certa vez, quando eu ainda era trouxa demais pra dar uma resposta que se preze, meu professor fez um discurso acalorado sobre como a ideia do Orgulho gay o incomodava. Arrematou com a frase: “Orgulho de quê? De dar a bunda? Eu não vejo orgulho nenhum nisso”.

Já se passam quase dez anos desde que eu ouvi essa pérola, mas ainda consigo me lembrar da expressão de nojo no rosto dele. Pode parecer drama de sapatão, mas não. Não é todo dia que uma lésbica ouve ataques tão diretos à sua existência, o mais comum é que tenhamos que lidar com o preconceito velado. Mas esse senhor, inconsciente da presença de homossexuais na sala, foi o mais honesto que pôde sobre o que pensava de nós. E nos fez lembrar o motivo pelo qual cada um escondia a homossexualidade de todas as formas possíveis: nós tínhamos vergonha.

Mudando um pouco de assunto, vocês sabem onde e quando surgiu a Parada Gay? Até bem pouco tempo eu também não sabia. Foi após uma manifestação contra a violência policial contra a população LGBT em Nova York, no ano de 1969. O grupo que frequentava os bares da região se rebelou contra os policiais e, durante quatro dias, resistiu à prisão e à violência da qual era vítima frequente. O acontecimento ficou conhecido como Rebelião de Stonewall. O resultado obviamente foi negativo para os manifestantes que apanharam muito e acabaram presos do mesmo jeito, mas o dia 28 de junho – data em que começaram os protestos – ficou marcado como dia oficial do orgulho gay.

Pra quem não entendeu ainda o que uma história tem a ver com a outra, eu explico: o Orgulho Gay não é tão somente orgulho de ser gay; é o orgulho da resistência, de manter-se existindo em uma sociedade que demoniza, ridiculariza, humilha homossexuais. O Orgulho Gay é o contrário da vergonha de ser gay, lésbica, bissexual, transexual e todos os outros grupos que compõem a população “fora da norma” quanto à sexualidade e ao gênero. Ou seja, a Parada do Orgulho Gay não é um dia pra comemorar o orgulho de dar a bunda, meu querido senhor professor (e eu nem vou entrar no mérito de como essa frase ignora a existência de outras sexualidades, a exemplo das lésbicas, e transforma toda a sigla LGBT em um grande G porque senão o texto vai ficar enorme).

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Sucesso (só que não) da manifestação do Orgulho Hétero, no Rio de Janeiro. (Foto: Eduardo Vallim/Ego).

É um dia pra comemorar o fato de nós estarmos vivos apesar de todas as tentativas de nos fazer desaparecer; um dia pra reivindicar o direito de sermos nós mesmos; um dia pra lutar por direitos básicos que nos foram historicamente negados. Ciente de tudo isso, qual não foi minha surpresa ao me deparar com a seguinte manchete: “Marcha do Orgulho Hétero reúne cerca de 20 pessoas no Rio”. Marcha. Do. Orgulho. Hetero. Orgulho. Hetero. Fiquei olhando para a foto, pessoas carregando cartazes com os dizeres “lanças e fendas”. LANÇAS E FENDAS, gente, LANÇAS E FENDAS. Eu queria saber quando foi que começamos a falar de sexo como se fosse Lego: essa pecinha encaixa aqui, aquela pecinha encaixa ali, essa não encaixa então não pode.

Mas de longe o melhor cartaz foi “Heteros unidos jamais serão extintos”. EXTINTOS. Eu não sabia que havia poucos heteros no mundo, fiquei bastante surpresa com a informação. Talvez alguém precise avisar a esses senhores e senhoras que já existe uma ferramenta da medicina chamada “fertilização in vitro”, que lésbicas podem engravidar e gays podem adotar bebês. Também não sabia que homossexualidade era tipo a peste negra, que se espalha terrivelmente, acometendo as pessoas e extinguindo a vida heterossexual do planeta. Até onde eu sei, a probabilidade de humanidade entrar em extinção é pequena e os heterossexuais continuam sendo a maioria da população.

Alguém está muito por fora das novidades do mundo moderno, resta saber se sou eu ou se são eles. Eu evito ceder às piadas sugerindo que homofóbicos sejam na verdade gays enrustidos porque acredito que essa é uma forma de culpar outros gays pelo preconceito ao invés de denunciar os verdadeiros culpados (a sociedade heteronormativa e patriarcal, a cultura de exploração da mulher, as religiões que propagam esse discurso, entre tantos outros). Mas nessas circunstâncias fica impossível não perguntar: Orgulho de quê? É tão difícil assim se segurar e se manter heterossexual? A “tentação gay” é assim tão grande?

Orgulho é algo que sentimos por superar dificuldades, por alcançar algo que nos é negado, por resistir. O hétero não pode ter orgulho de superar dificuldades e alcançar direitos negados a ele em função da sua sexualidade (porque isso nunca aconteceu), meus amigos, então só nos resta pensar que a palavra está sendo usada no sentido negativo: exagerada estima por si mesmo. É impressionante a capacidade que alguns heteros têm de se considerarem os guardiões dos bons costumes, moralmente superiores, imaculados diante da “pouca vergonha” que acreditam ser a homossexualidade. Os caras se acham maravilhosos demais.

A Marcha do Orgulho Hetero – assim como outras iniciativas do gênero, como o Dia do Orgulho Hetero, proposto pelo nosso estimado Deputado Eduardo Cunha – nada mais é do que a repetição do discurso feito pelo meu professor, anos atrás: “Tenho orgulho de ser hetero, de ser diferente de vocês, viados. Tenho orgulho de ser hetero, porque ser gay é motivo de vergonha”. A existência de pessoas que acreditam na necessidade de ações desse tipo é o motivo pelo qual o Orgulho Gay ainda faz sentido, o motivo pelo qual ainda é necessário: porque há pessoas querendo nos empurrar garganta abaixo vergonha por ser quem somos. O dia do Orgulho Gay é necessário porque todos os outros dias do ano ainda são dias de vergonha para a população LGBT.

*LEIA MAIS:

– Entrevista: “Pode me chamar de sapatão mesmo”

– Email para meu futuro neto: “Ser gay na minha época era foda”

– Marias purpurinas: por que elas desejam os gays?

– Bom-humor contra estereótipos

– Avô escreve carta sobre o neto gay

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Comentários
  • Oi Sald, adorei a forma como você tratou o assunto! Minha reação ao ver a noticia sobre o orgulho hétero foi bem parecida com a sua. Me soou parecido com a criação do “dia do homem” e “consciência branca”: no mínimo, uma deturpação e tentativa de minimização do significado do movimento original, mas muito provavelmente uma manifestação expressa do preconceito. Entendo, até, que algumas pessoas das gerações anteriores, como meus pais e avós, não lidarem de forma tão natural com a homossexualidade como eu (assim como não lidam naturalmente com um smartphone ainda) é uma questão de adaptação: a juventude deles foi diferente e é fato que, quanto mais velhos ficamos, mais resistentes somos à mudanças. Mas nada justifica interferir na sexualidade alheia e querer impor sua forma aos outros. Não consigo entender porque algumas pessoas não ficam felizes em ser internamente bem definidos (seja quanto à sexualidade, religião ou questões “polêmicas” como o aborto): elas precisam “doutrinar” e converter a todos para aquele mesmo molde que criaram para si mesmos. Bem, vou ficando por aqui, aguardando por sua próxima participação. Beijos

    4 de março de 2015
  • Sald, até que dá pra ficar otimista. Não dá nem pra chamar de marcha um movimento que reuniu apenas 20 babacas numa cidade enorme como o Rio.

    21 de março de 2015
  • Parabéns a todos os envolvidos!! Precisamos disso para nos unir!

    abraços

    30 de abril de 2015
  • Bom dia, sou hetero, casado e pai de um menino.
    Achei simplesmente sensacional seu artigo. Sou empresário no ramo da segurança, sendo assim, vivo rodeado de brutamontes ignorantes, e obrigado a ouvir comentários como o do seu digníssimo professor.
    Chega a ser cômico como o movimento LGBT incomoda algumas pessoas. Porém tenho presenciado alguns extremismos por parte de alguns gays para confirmar seus direitos, que só reforçam os preconceitos dos opositores. Espero realmente que as pessoas parem de rotular os outros por sua sexualidade e o façam por seu caráter.
    Parabéns pelo artigo novamente.

    29 de maio de 2015

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