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“Homossexualidade temporária é comum nas cadeias femininas”, diz autora

Você pode até perder a liberdade, mas não perde a sexualidade. Então como ela se manifesta no ambiente confinado de uma cadeia? Mulheres condenadas pela justiça continuam sentindo tesão, menstruando, se apaixonando, engravidando, pegando doenças sexualmente transmissíveis… Durante cinco anos, a jornalista Nana Queiroz, diretora da Revista Azmina, investigou o dia a dia das presas brasileiras em todos os aspectos, colheu depoimentos, levantou dados.

A grande reportagem virou o livro “Presos que Menstruam” (Editora Record), publicado em julho passado, uma espécie de “Carandiru” na versão feminina. Nesta longa entrevista, Nana conta que as detentas recorrem até a miolo de pão como absorvente interno, experimentam relações homossexuais pela primeira vez, raramente recebem visitas íntimas – ao contrário do que acontece nas penitenciárias masculinas -, chegam a parir de algemas e sem direito de colocar o recém-nascido nos braços.

– O nome escolhido para o seu livro, “Presos que Menstruam”, já remete a um aspecto da sexualidade que deve ser bem complicado dentro de uma penitenciária feminina. As mulheres recebem absorventes e remédios para cólica, por exemplo? 

NANA – Em geral, não recebem ou não recebem o suficiente. A verdade é que, como a sociedade brasileira, o Estado, através do sistema penitenciário, faz questão de fingir que não vê a sexualidade das mulheres. Como resultado elas vivem de improvisos: usam jornal, pano de chão e até miolo de pão como OB, em casos extremos. Nem precisamos dizer como isso pode causar infecções, né?

Recentemente, porém, tive a alegria grande de sensibilizar as pessoas pra essa questão com o livro. Mulheres de várias partes do Brasil organizaram mutirões para arrecadar absorventes para as presas e algumas penitenciárias femininas, como a do Rio de Janeiro, até tomaram vergonha na cara e compraram uma grande leva.

– Dia de visita íntima em presídio masculino costuma ter filas de esposas, namoradas, ficantes etc. As presas têm esse direito também? Com que frequência? Existe um local específico para o sexo e tempo pré-determinado? O número de visitas é grande ou muitas acabam anos sem nunca desfrutar disso?

NANA – Olha que coisa maluca: apesar da Lei de Execução Penal prever a visita do cônjuge desde seus primórdios, os legisladores entendiam, até os anos 1990, que este era um direito garantido aos presos HOMENS. Alguns chegavam ao absurdo de sustentar em documentos visões machistas como “o sexo serve para controlar o instinto natural do homem à violência” ou “homens não conseguem viver sem sexo sem enlouquecer”, como se nós, mulheres, também não gostássemos de sexo – e como se não fôssemos nós, e não eles, o único sexo capaz de ter orgasmos múltiplos! rs

Na década de 1990, porém, um grupo arretado de ativistas começou a se organizar e exigir que os presídios permitissem visitas íntimas para mulheres também. Quando finalmente conseguiram e os primeiros presídios de São Paulo começaram a construir seus “motéizinhos”, porém, qual foi a surpresa: ninguém veio transar com as presas. Isso acontece porque o brasileiro é machista, em suma. Ora, as mulheres de nosso país são criadas para serem fiéis aos homens custe o que custar – mesmo na prisão. Já, para os homens, mulheres que não lavam, passam, cozinham e servem de mães não servem para mais nada e devem ser abandonadas. Não são “boas mulheres”, mesmo que sejam presas por culpa de crimes nos quais os próprios maridos e parceiros as meteram.

– Elas ganham uma “cota” de camisinha na penitenciária? Você notou casos de mulheres com doenças sexualmente transmissíveis ou mesmo de quem foi infectada pelo vírus HIV enquanto estava atrás das grades?

NANA – As poucas mulheres que recebem visitas íntimas ganham camisinhas, mas o Estado esquece de considerar que as presas também fazem sexo entre si e essa relação sexual também exige proteção. Existe no Brasil uma ideia de que o sexo entre mulheres é inofensivo – “ah, vai, nem sexo não é se não penetração”, dizem. Mas isso é uma bobagem gigantesca na qual, infelizmente, acreditam até mesmo alguns ginecologistas. Estudos mostram que entre 40 e 60% das mulheres que transam com mulheres já pegaram algum tipo de DST – e o perigo aumenta quando há menstruação envolvida, mesmo que apenas a “borrinha de café”.  Em resumo: mulheres estão pegando doenças como HPV e candidíase ou até AIDS transando umas com as outras nas cadeias do Brasil sem saber que devem usar camisinhas femininas ou sem receber essa proteção do Estado.

Eu conheci algumas mulheres com AIDS na prisão, mas esse era um assunto tabu sobre o qual elas não queriam falar comigo. Não sei se contraíram ali ou antes de serem presas. Talvez este seja um assunto para um próximo livro. O que sei, porém, é que entre as presas estrangeiras existe uma quantidade considerável de mulheres africanas soropositivas que querem migrar ao Brasil para receber nosso excelente e gratuito tratamento anti-HIV (somos modelo mundial nisso!) e, como não têm dinheiro para migrar legalmente, aceitam trazer drogas ao Brasil em troca de passagem, passaporte e alguma comissão. Claro, muitas delas acabam presas mas, ao menos, mesmo dentro da prisão recebem antirretrovirais. Falo um pouco sobre isso no livro.

O livro, lançado em julho passado, já está na quarta edição (Divulgação / Editora Record)

– Parece óbvio que elas reclamem de solidão. Como lidam com a falta de sexo? Rola se masturbar, considerando que estão em celas e sem privacidade?

NANA – A verdade é que a intimidade vira um luxo pra essas mulheres, mas elas se esforçam para gozar de um pouquinho, estendendo varais e lençóis entre as camas. Mas é verdade que, em alguns presídios, nem mesmo a privada em que se faz cocô tem porta – e mesmo o carcereiro homem que passa no corredor consegue ver o que rola lá dentro, como na Penitenciária de Santana, em SP.

Mas elas são criativas e encontram mil maneiras de namorar, sabe? Algumas mandam cartas para irmãos e primos de outras detentas e ainda há aquelas que escamoteiam celulares para dentro dos presídios para poder ligar para pretendentes. Conheci uma moça que arrumou um marido assim!

– Algumas presas declaram que “se tornaram homossexuais” ou “estão bissexuais” desde que perderam a liberdade. Principalmente por causa da solidão e do convívio com outras mulheres. Você descobriu casos assim? Como se dá essa coisa de explorar a sexualidade dentro de uma cadeia?

NANA – O fenômeno na homossexualidade temporária é super comum nas cadeias femininas. Enquanto homens lidam com a homossexualidade de forma oculta ou através do estupro e da prostituição de detentos mais fracos, as mulheres desenvolvem relacionamentos de muito afeto. Isso nos mostra que a sexualidade humana tem muiiiiito mais história do que essas visões preto no branco que temos hoje em dia.

Diante do abandono e do sofrimento, muitas detentas se apoiam até que o afeto se torne desejo. Em alguns casos, não raros, é o primeiro desejo homossexual que aquela pessoa já sentiu na vida. Essas dizem que não são, mas estão lésbicas. Algumas saem em liberdade e continuam juntas, se casam. Outras nunca mais se relacionam com mulheres de novo. Nos anos 1980, fizeram uma estimativa na penitenciária feminina de Brasília de que a homossexualidade (temporária, na maioria dos casos) era prática entre 50% das presas. Hoje, com a abertura para a homossexualidade e superação de muitos preconceitos, suspeito que o número já gire em torno de 70% ou até 80%.

Mesmo assim, no entanto, essas mulheres encaram um preconceito brutal. Até que a união civil homossexual fosse igualada ao casamento em direitos, no Brasil, elas eram proibidas de visitar suas parcerias quando saíam em liberdade. Em alguns casos, os presídios faziam as detentas escolherem entre a visita da “amiga” e dos parentes, o que inclui os filhos.

Enquanto estão presas, detentas que são pegas em atos sexuais umas com as outras são colocadas de castigo e punidas em alguns presídios. Punir a homossexualidade em um país em que preconceito é crime devia dar cadeia também!

Ativista feminista, Nana lançou a campanha “Não Mereço Ser Estuprada” quando pesquisa do IPEA revelou que “roupas curtas” justificam o crime (Divulgação / Arquivo pessoal)

– A mídia já noticiou casos de presas que foram algemadas durante o parto e mal puderam pegar o filho nos braços, situações bastante condenadas por ativistas de direitos humanos. Acontece com regularidade nos presídios do país? Você chegou a ouvir dramas desse tipo? Elas recebem atendimento psicológico?

NANA – Sim. Há no livro uma história muito brutal de uma mulher que passou por isso no parto – não pode amamentar, olhar o bebê após o nascimento ou sequer escolher o nome da filha – e, anos mais tarde, a filha ainda vive transtornos psicológicos severos. Felizmente, muitos estados, nos últimos anos, têm criado recomendação de que se evitem as algemas no parto ou a caminho dele. Alguns chegaram a criminalizar a prática. Mas, infelizmente, nos grotões do Brasil isso ainda acontece. E, como diz uma das ativistas que entrevistei para o livro “Só um homem pra achar que uma mulher em trabalho de parto vai sair correndo com o filho escorrendo pelas pernas”. Mas é isso, quem faz as leis no Brasil são homens – nós somos apenas 10% das legisladoras.

– Como é a realidade das presas que entram grávidas ou engravidam na prisão? Elas recebem pré-natal, são separadas das demais?

NANA – Nossa, você não imagina como essa realidade é triste. Grávidas ficam com a população geral e dormem até no chão em muitos presídios Brasil afora. Ás vezes não recebem alimentação adequada e adoecem de anemia. Pré-natal é luxo, já que a maioria dos presídios não têm médicos obstetras e existe um deficit de carcereiros que impossibilita que hajam escoltas constantes para levar gestantes ao médico.

Ouvi dezenas de relatos de grávidas que foram torturadas – algumas até receberam pauladas na barriga – ou mulheres que sofreram abortos espontâneos e, sem curetagem, assistiram o bebê apodrecer dentro de si, entre febres e dores. Além disso, há quase 2 mil crianças presas no Brasil hoje! Essas crianças tb dormem no chão ou em colchões mofos e salas emboloradas e sem ventilação. Assistem as mães sendo humilhadas e agredidas e não tem acesso a brincadeiras necessárias à formação nesta idade.

A maioria dessas mulheres e seus bebês nem sequer deveriam estar privados de liberdade. Isso porque a imensa maioria delas não representa um perigo à sociedade. Exatamente: 90% das mulheres presas no Brasil hoje não cometeu crimes violentos, mas infrações que serviam como complemento de renda em famílias monoparentais ou simplesmente esmagadas pela pobreza. São mulheres negras e pardas, sem nem o Ensino Médio completo e, como indica um estudo feito no Rio Grande do Sul, 40% vivenciaram situações de violência doméstica que, de uma forma ou de outra, as levou ao crime. Cerca de 65% delas, por exemplo, foi arrebatada por uma guerra às drogas fracassada, que castiga os fracos enquanto os grandes traficantes andam soltos por ali. E castiga as mulheres e seus filhos muito mais que aos homens, proporcionalmente.

***Este post foi originalmente publicado na coluna da Nath no Yahoo.

*LEIA MAIS:

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Comentários
  • Tadinhas, as bichinhas são bem boazinhas para estarem lá. Jura que elas não tem tratamento digno? Vocês que já nasceram na classe média ou alta vivem numa bolha e não veem que grande parte da população passa por problemas semelhantes e pior são pessoas de bem. Os presos merecem tratamento justos? Com certeza, mas me preocupo primeiro com o cidadão que dá duro para sobreviver e alimentar toda a sua família. Quem tem pena do ladrão, assassino, estuprador… adote um. É sua opinião e entendo mas em vez de olhar pro lixo humano eu prefiro olhar pra quem tenta fazer de tudo para se manter sem ter que agredir aos outros ou infringir á lei de outra forma.

    2 de abril de 2016
  • Matéria incrível…

    Pena eu tenho de pessoas que pensam como nosso leitor acima, infelizmente. Diz que acha que presos merecem tratamento digno, mas fala deles como “lixo humano”. A pobreza e miséria neste país é um problema de toda sociedade, não só do Estado. A partir do momento que isso interfere em toda a nossa volta. Pessoas sem estudo, sem oportunidade, além de viverem à margem da sociedade, em condições precárias, também não conseguem contribuir de forma positiva para o nosso país.
    Nenhum ser humano merece viver no inferno, porque de lá ele só sai pior, mais perdido e VOLTA SIM, para a sociedade, porque nesse país não existe prisão perpétua.
    Criminosos e criminosas devem ser punidos sim, mas proporcionalmente aos crimes que cometeram e devem ter a oportunidade de aprender com o erro que cometeram e capacidade de se manterem por si mesmos quando saírem.
    Quem disse que estas pessoas que estão presas, também não deram duro para alimentar suas famílias? Colocar todo mundo no mesmo saco e chamar de bandido é fácil. Não é certo infringir a lei, mas também não é certo desumanizar as pessoas. É apenas uma análise simplista que não agrega nada à ninguém.
    Essas criminosas e criminosos, são em grande parte, fruto de uma sociedade carente de educação, oportunidade, programas sociais, falta de opções de lazer e cultura e assim vai.. a lista é longa!!

    6 de abril de 2016
  • Entendo que quando uma pessoa está presa, tanto faz se homem ou mulher, ela não só está com sua liberdade restrita como também possui direitos restritos. Na minha ótica o direito ao sexo é um dos direitos a que estão restritos. De qualquer forma, é fato que transam entre si e que vão continuar transando. Tudo isso pra dizer que sou totalmente contra a visita intima.

    25 de agosto de 2016

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