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A tradição que corta o clitóris das meninas (até com caco de vidro)

Apenas neste ano, segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de três milhões de meninas devem ter seus clitóris arrancados à força em mais de trinta países. Muitas das 200 milhões de vítimas dessa tradição (leia-se violência) descobriram a dor brutal aos quatro anos, no chão de uma cabana, com as pernas escancaradas por mulheres mais velhas – como a circuncisadora da foto abaixo. Não aplicam anestesia para o que acontece na hora nem para a vida que vem depois.

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Na Somália, esta “circuncisadora” mostra a faca com que já extirpou o clitóris de mais de 1.000 meninas em 30 anos de carreira. As ervas são aplicadas para cicatrizar as feridas (Associated Press)

Ao contrário dos homens, as mulheres nascem com um órgão cuja única função é proporcionar prazer. Por isso algumas culturas separam as garotas “boas” das “más” dependendo do que se vê no alto de suas vulvas. Cortar o clitóris seria, digamos, como cortar a cabeça do pênis (deixando-o só com a uretra para urinar e expelir o sêmen). Orgasmo pra quê? Reproduzir não é suficiente?

“Querem que elas tenham filhos, mas não apetite sexual”, diz Nadine Gary, diretora de operações da Clitoraid. A ONG realiza cirurgias de reconstrução do clitóris (muitas em missões humanitárias na África), promove campanhas contra a mutilação genital feminina, luta pelo empoderamento das vítimas e pela liberdade sexual das mulheres. O site da Clitoraid recebe doações do mundo inteiro.

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Diretora da ONG Clitoraid, Nadine Gary é ativista contra a Female Genital Mutilation (Divulgação / Clitoraid)

– Por que algumas comunidades mantêm a tradição de extirpar o clitóris?

NADINE – Em todos esses países, o motivo é o mesmo: subjulgar as mulheres e reprimir sua sexualidade. Acreditam que a mutilação garante que serão “boas garotas” e não vão “andar por aí”.  Querem que elas tenham filhos, mas não apetite sexual (senão “podem trair o marido”, por exemplo). Algumas comunidades dizem que a circuncisão do clitóris é parte de sua identidade cultural. Mas não é botar um piercing na orelha… Eles removem um órgão – imagine se a tradição fosse remover um fígado? É mutilação, uma ofensa severa aos direitos das crianças e das mulheres!

– Em que idade as meninas são submetidas à mutilação? É um ritual coletivo?

NADINE – Depende. Em alguns vilarejos, a circuncisão do clitóris é feita no nascimento do bebê e encarada como algo rotineiro. Outras comunidades circuncisam as meninas juntas, por volta dos quatro ou catorze anos, e celebram esse “ritual de passagem” com muita comida. Na Indonésia, as crianças são levadas para a escola num dia específico com a desculpa de que precisam fazer exames médicos e, quando chegam lá, descobrem que serão circuncisadas.

Como e por quem esse “procedimento” é feito?

NADINE – Os vilarejos têm as chamadas “circuncisadoras”, mulheres que aprenderam com as mães como se remove o clitóris e cobram cerca de 3 dólares por menina. Elas vivem disso. Muitas vezes acontece no chão da cabana mesmo. Quatro mulheres seguram a criança ou a adolescente e, sem nenhum tipo de anestesia, extirpam o clitóris com uma lâmina de barbear, um pedaço de vidro quebrado… É uma coisa brutal, uma dor excruciante! O clitóris tem milhares de terminações nervosas, é a parte mais sensível do corpo da mulher.

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Molde do clitóris em 3D, criado pela pesquisadora francesa Marie Docher, prova que a parte externa é só a ~pontinha do iceberg~ (Reprodução)

– E a recuperação?

NADINE – Tudo é feito de qualquer jeito, em segundos, enquanto a criança se retorce de dor e medo. Às vezes a circuncisadora não consegue enxergar direito também (os genitais não estão totalmente desenvolvidos aos quatro anos) e acaba causando mais danos. As meninas ficam com as pernas amarradas por semanas para que a cicatrização aconteça. Elas contraem infecções sérias e não têm medicações. Leva pelo menos um mês para se recuperarem e conseguirem voltar para a escola, por exemplo.

– O que acontece quando uma mãe não aceita que a filha seja circuncisada?

NADINE – Bom, todas as meninas frequentam a mesma escola. Quando uma garota não é circuncisada, todo mundo sabe e as demais a isolam. Ninguém quer brincar ou ser amiga de uma “menina má” e “suja”. As mulheres da comunidade também pressionam e ofendem a mãe dizendo que a filha será uma prostituta, que vai trair o marido etc. Mas algumas mães realmente não desistem, não mudam de ideia, conseguem suportar a pressão.

– Quais as consequências físicas de uma mutilação dessas?

NADINE – Nossas pacientes dizem que, depois da circuncisão, a pior parte é urinar. E, se você não urina, aparecem os problemas na bexiga. Mesmo quarenta anos depois da circuncisão, recebemos relatos de mulheres que ainda sentem todo tipo de dor. Muitas têm dificuldade graves para dar à luz pela forma como o genital cicatrizou. Na tribo dos Masai, no Quênia, não só removem o clitóris como costuram a abertura da vagina para que fique apertada. Na hora do parto, eles cortam para abrir espaço, tiram o bebê e “fecham” de novo. Assim a penetração dá mais prazer para o homem. Estamos falando de uma coisa da Idade Média.

– Sem o clitóris, elas conseguem ter algum tipo de prazer?

NADINE – Depende de como a circuncisão foi feita, do pedaço retirado e da cicatrização. Algumas ficam com um pouquinho de sensibilidade na área. Outras não sentem nada além da dor (especialmente na penetração). Às vezes elas fingem orgasmos, mas é difícil porque dói muito.

– E o impacto na autoestima e nos relacionamentos delas?

NADINE – Estamos no século 21. As pessoas entram na internet e podem ver como é o genital de uma mulher “normal”, ler sobre como é uma vida sexual saudável… Recebemos muitas cartas de mulheres pedindo: “Por favor, ajude a salvar meu casamento. Ele não me quer mais porque não sou uma mulher normal”. Primeiro a comunidade quer que a garota seja circuncisada para achar um marido e, quando ela acha, o marido tem uma nova forma de encarar os relacionamentos [quer que a mulher goste de sexo também] e a abandona. Não faz o menor sentido! Com a cirurgia de reconstrução do clitóris que fazemos, a autoestima melhora 100% porque elas se sentem “mulheres completas”.

A cirurgia de reconstrução do clitóris, feita pela ONG, devolve a sensibilidade e alivia a dor das vítimas (Divulgação / Clitoraid)

A cirurgia de reconstrução do clitóris, feita pela ONG, devolve a sensibilidade e alivia a dor das vítimas (Divulgação / Clitoraid)

– Como funciona essa cirurgia? Dá pra devolver a sensibilidade à região?

NADINE – As circuncisadoras acham que cortam o clitóris inteiro, mas o órgão é muito maior do que a “pontinha” que enxergamos [duas hastes com cerca de dez centímetros pendem pelas laterais dos lábios vaginais; a parte externa é a glande]. Nossa cirurgiã-chefe, Dra Marci Bowers, remove o tecido cicatrizado e puxa parte do corpo interno do clitóris para a superfície. A cirurgia leva cerca de 45 minutos, devolve a aparência normal e a sensibilidade do genital, além de acabar com a dor. Mais ou menos um mês e meio depois, a paciente começa a sentir “alguma coisa” – mesmo que não seja se tocando. Às vezes só de ter a calça roçando ali enquanto caminha.

– Todas conseguem ter orgasmos depois da reconstrução do clitóris?

NADINE – Cerca de 80%, sim. Mas algumas foram circuncisadas tão profundamente que é difícil trazer a sensibilidade de volta.

– Quantas mulheres foram operadas pela Clitoraid? Qual o custo da cirurgia?  

NADINE – Já fizemos 300 cirurgias. Nossa última missão no Quênia, no ano passado, operou 45 mulheres em duas semanas. Vamos para lá de novo, em julho, com a mesma meta. Não cobramos pela cirurgia. No Quênia, há um custo médico (anestesia, enfermeiras, leito hospitalar etc) de 150 dólares. Nos Estados Unidos, o custo é de 1.700 dólares. Esses valores não vão para a Clitoraid. Construímos o “Hospital do Prazer” em Burkina Faso [país na África Ocidental onde vivem milhões de mulheres com genitais mutilados], equipamos e treinamos cirurgiões locais. Ele deveria ter sido inaugurado em 2014, mas o governo sempre inventa desculpas para proibir o funcionamento. É inacreditável. Estamos operando em uma clínica particular perto do hospital.

Percentual de mulheres que sofrem mutilação do clitóris por país. Em vermelho, 80% são submetidas à FGM (Unicef; 2013)

Percentual de mulheres que sofrem mutilação do clitóris por país. Em vermelho, 80% são submetidas à FGM (Unicef; 2013)

– Você acredita que essa “tradição” um dia vai acabar?

NADINE – Na China e no Japão, houve um tempo em que as mulheres tinham que ficar com bandages apertando os pés [o que os deformava e causava problemas de locomoção] porque os homens gostavam de pés pequenos. E essa tradição acabou até nos pequenos vilarejos. Esperamos que, ainda nesta geração, o mesmo aconteça com a circuncisão do clitóris. Nenhum ser humano merece passar por isso.

***Este post foi originalmente publicado na coluna da Nath no Yahoo. 

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