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“Não me prostituo por dinheiro”, diz travesti com diploma da Unicamp

(Divulgação / Arquivo pessoal)

Travesti. Prostituta. Doutoranda em Teoria Literária pela UNICAMP. Amara Moira abre a porta do apartamento na zona sul de São Paulo em que mora com a namorada, uma professora de letras. São nove da manhã e tenho certeza de que ela acabou de acordar. Alta, os cabelos cacheados, um vestido leve estampado, os traços afinados por hormônios, o rosto lisinho graças à depilação a laser. Seus gatos miam passando entre minhas pernas. Não deixo de reparar na quantidade de livros em sua sala – uma obra de Michel Foucault, teórico da sexualidade, repousa ao lado do notebook. Amara parece tímida, fala baixinho, gesticula delicadamente. Aos 31 anos, expõe de forma ultra articulada sua transição: nasceu com pênis, esforçou-se a vida inteira para “ser o menino” que esperavam que fosse, assumiu há dois anos sua transexualidade, entrou para a militância de cabeça e acaba de ser convidada pelo PSOL para sair como vereadora de Campinas nas próximas eleições.

Depois de ler esta longa entrevista, você poderá discordar de cada uma das opiniões de Amara, mas não terá como negar sua inteligência. Eu mesma não a conhecia pessoalmente. Nosso encontro aconteceu semanas antes do debate “Sexo em tempos de feminismo” que foi realizado dia 27/04, em São Paulo, pela Revista Azmina. Transexualidade e prostituição, pautas da entrevista a seguir, são apenas dois dos temas polêmicos e espinhentos que vamos abordar no debate. E Amara derruba muitos estigmas ao tratar deles com franqueza.

– Você se considera transexual, travesti ou prefere não entrar em nenhuma “caixinha”?

AMARA – Mais do que tentar definir o que é uma travesti e o que é uma trans, gosto de pensar os sentidos que estão atrelados às duas palavras. Travesti está associada à prostituição, marginalização, exclusão de direitos, evasão escolar. Transexual já é mais aceita, “limpinha”, o jornal trata como “a mulher trans” (enquanto diz “o” travesti). A diferenciação tem muito mais a ver com uma questão de classes sociais. Prefiro me colocar como travesti, embora o grupo de travestis no qual me referencio muitas vezes me considere trans porque não fiz intervenções corporais como silicone, porque escolhi me prostituir e não tenho na prostituição a minha fonte de renda principal. Mas me defino assim para derrubar estigmas, pensar uma nova ideia de travestis que tem acesso aos estudos, apoio familiar… Sou de uma classe média ascendente: meus pais foram os primeiros da família a fazer faculdade, moram num bom bairro em Campinas, eu sou a primeira a fazer doutorado.

– Em tese, costuma-se dizer que a transexual tem ojeriza ao genital com que nasceu e a travesti, não. Essa seria a diferença entre os dois conceitos. Você concorda?
AMARA – Discordo bastante. Isso reduz uma identidade sexual pela relação que a pessoa tem com o próprio corpo. E essa relação com o corpo é construída na sociedade. Por exemplo, dez anos atrás, para conseguir qualquer correção em documentos como um RG ou inserção social, você tinha que passar pela cirurgia de redesignação sexual [popularmente conhecida como “mudança de sexo”]. As pessoas trans depositavam muita expectativa nessa cirurgia mesmo não sentindo tanta ojeriza ao próprio genital, entende? Todas tentavam entrar na fila porque essa era a única forma de conseguir alterar os documentos, o que resolve uma porrada de problemas. Se você tem uma aparência feminina, se apresenta como Joana e o papel referenda que você é Joana… Você consegue bancar essa identidade. Quanto mais desburocratizada fica essa questão, mais conseguimos garantir às pessoas trans acesso à cidadania, mais vamos pensar na transexualidade para além da repulsa ao genital de origem. Nem todas querem se submeter a uma cirurgia altamente invasiva.

– Quando percebeu que não atendia ao que a sociedade esperava de você?
AMARA – Não foi uma coisa óbvia, fácil, do tipo “lembro que naquele dia me olhei no espelho e descobri”. Quando entendi que tinha algo errado comigo, percebi como eu sempre me esforcei para me encaixar num papel masculino. E esse esforço me blindou de me enxergar como eu era de verdade. Aos 18 anos, me dei conta de que não sou o homem que me criaram para ser e tudo desmoronou. Imaginava que, só depois de passar num concurso público e virar professora universitária, poderia me assumir sem medo de passar por todo o processo de exclusão social que costumam viver as travestis. Eu tentei jogar esse jogo, mas não consegui esperar tanto tempo. Assim que consegui a bolsa de doutorado na Unicamp [R$ 2 mil por mês], tive autonomia financeira e comecei minha transição. Dois anos atrás, pedi pela primeira vez que me chamassem pelo nome Amara. Eu não tinha muita certeza de nada, queria descobrir vivendo, dia após dia, aonde eu queria chegar.

– Mas você não vivia isso secretamente há mais tempo? Não se vestia como mulher, por exemplo, quando estava sozinha?AMARA – Três anos e meio atrás, comprei hormônios femininos e sem orientação médica – não tinha muita ideia do que tava fazendo, achava que meu corpo ia mudar e eu chegaria para a família avisando que já era trans. Não contei para ninguém, não tinha com quem desabafar. Fui numa loja de departamento e comprei várias roupas de mulher, escondi no meu armário. Quando meus pais saíam de casa, eu vestia, brincava de fazer as unhas… Depois de duas semanas de doses cavalares de hormônio, me deu um pânico e eu só chorava pensando que poderia perder toda a vida que tinha construído até então. Joguei tudo no lixo. Procurei uma psicóloga para “me curar” e e ela foi fundamental em me ajudar a perceber que não era eu o problema. No carnaval de 2014, coloquei uma roupa feminina, saí em público como Amara pela primeira vez, na brincadeira, e aquilo me perturbou de um jeito que precisei me vestir assim nos outros dias do carnaval. Senti uma leveza e uma liberdade tão grandes. Eu namorava há quatro anos uma menina e ela se incomodou, percebia que tinha algo esquisito ali. Uma semana depois, estava num ato pelo Dia da Mulher também vestido daquela forma e fui de lá para um almoço de família. Todo mundo achava que era só uma brincadeira, continuação do carnaval, então brincavam de me chamar de Amara. Entrei na militância LGBT da faculdade, fui caçando um espaço pra mim, na época apenas como bissexual, e descobri que havia um grupo de pessoas que me apoiariam mesmo sem saber de nada ainda. Comecei a me sentir à vontade, voltei a tomar os hormônios, só que dessa vez sabia o que aconteceria com meu corpo.

(Divulgação / Arquivo pessoal)

– Teve vontade de botar silicone e fazer a mudança de sexo?
AMARA – Cheguei a juntar dinheiro para a prótese nos seios, mas muitas clínicas boas não aceitam fazer cirurgia em pessoas trans porque consideram uma mutilação ou exigem laudos e burocracia. Restam os “cirurgiões açougues” e não quero colocar minha saúde em risco com silicone industrial. Além disso, com a aproximação do feminismo, também fui revendo essa ideia. Por que vou colocar prótese e perder a sensibilidade do peito? Tudo pra me enquadrar no que se considera um ideal de feminilidade, um ideal de mulher? Eu tô feliz, aprendendo a ficar bem com o meu corpo. Não gostaria de me submeter a uma cirurgia genital, algo que me violentaria. Prefiro não usar o pênis no sexo, mas não há nenhuma necessidade de operação.

– Quando você entrou na faculdade de letras da Unicamp, você tinha aparência masculina ainda? Saía com homens e mulheres?
AMARA – Sim, com barba e tudo. Era assumidamente bissexual, mas ninguém nunca tinha me visto com homens porque a minha homofobia internalizada não me deixava lidar bem com a ideia de manter relações com homens. Não conseguia viver relacionamentos afetivos com homens, só sexuais – eu ia com anônimos pro “banheirão”, pro “dark room”, lugares e situações precárias. Era um prazer, mas vinha junto com uma culpa imensa. Eu sempre ficava mal depois. Embora ainda não me assumisse trans aos 19 anos, eu banquei uma relação com uma mulher trans publicamente em 2006, de morar junto, de andar de mãos dadas e ir ao cinema… As pessoas ficaram em choque, mas ela frequentou inclusive a casa dos meus pais. O fato de eu ter assumido publicamente aquela relação quando eu tinha só 21 anos, faz com que hoje eu não aceite menos de quem queira se relacionar comigo.

– Acham que você está apenas interpretando uma personagem feminina hoje em dia?
AMARA – Sim, mas é o contrário. Eu vivi a personagem masculina que criaram para mim. E fiz isso por muito tempo. Por amor aos meu pais, a minha ex-namorada… Muita gente acha que eu escolhi ser travesti, mas o que as pessoas acham é problema delas.

– Como sua família reagiu quando você bancou a sua transexualidade?
AMARA – Nunca faltou carinho, mas teve muita dor. Eu fui para São Paulo na Parada LGBT 2014 e abri um crediário numa loja para comprar roupas femininas um dia antes. Viajei só com elas e vivi quatro dias assim. Conheci uma drag queen que me montou para irmos a uma balada LGBT. Foi a primeira vez em que me consegui ver no espelho uma imagem feminina, acreditar que poderiam me ver como mulher. Lembro de dormir com o rosto pra cima para não estragar a maquiagem (risos). Voltei para Campinas dia 5 de maio com peruca e salto alto, meus pais foram me buscar na rodoviária com a minha avó. Entrei no carro e minha mãe disse: “Esse é o presente de aniversário que você vai dar para a sua avó de 92 anos?”. Eu respondi: “Ela queria algo melhor do que ganhar uma neta?”. Silêncio constrangedor. Minha vó pegou na minha mão e disse que iria rezar para eu voltar a ser o netinho de antes. Minha mãe chorou compulsivamente por dias, mas tentava aceitar. Num dia ela chorava, no outro me ajudava a pentear perucas, aí voltava a chorar e no outro me ensinava a fazer a cutícula. Meu pai falou: “Tá difícil, mas não o suficiente para eu nunca mais querer te ver”. Sete meses depois, no Natal, ele chamou a família para dizer: “Eu queria reconhecer publicamente a minha admiração e o meu orgulho pela forma como você fez sua transição. A partir de hoje, vou te chamar de Amara”. Eu só consegui fazer essa transição porque tive o apoio também de amigos da universidade, que se sentiram no dever de me ajudar no processo. Se eu tivesse que negociar minha identidade com cada pessoa, não sei se teria forças. Quando alguém errava e me chamava pelo masculino, outras pessoas da roda corrigiam, não eu.

– Estar inserida num ambiente acadêmico te favoreceu.
AMARA – Com certeza. E a comunidade trans da Unicamp é muito forte. Na época em que comecei a me assumir, tinham apenas quatro pessoas trans, todas militantes, entre 30 mil alunos. Hoje são quase vinte.

– Você se sentiu pressionada a virar militante pelo fato de ser privilegiada nesse universo das trans e travestis?
AMARA – Até os 28 anos, nunca havia participado de movimentos sociais, me mantinha bem alienada. No momento em que virei militante, encontrei outro sentido para a minha vida. Antes da transição eu achava que teria um lugar fácil no mercado de trabalho pelo meu diploma e, como trans, tudo mudou radicalmente. Eu teria chance em subempregos ou concurso público ou na prostituição, essas eram as alternativas. Isso me apavora e me traz culpa por ter vivido tanto tempo alheia a essas lutas.

– O PSOL te convidou para sair como vereadora em Campinas. Você imaginava enveredar para a política?
AMARA – Um ano e meio atrás houve um escândalo de transfobia na Unicamp – picharam os banheiros femininos com frases como “Vamos cortar suas picas” e “Ser mulher não é calçar nossos sapatos”. Fizemos ato, demos entrevistas para o jornal. Percebi que estava virando uma pessoa conhecida, trazendo pautas para o debate etc. Me filiei ao PSOL porque o partido defende bandeiras com as quais me identifico.

(Divulgação / Arquivo Pessoal)

– Os ultraconservadores que você deve enfrentar na política não te assustam?
AMARA – Acho que dou conta de enfrentá-los. Tenho formação acadêmica, não vai ser fácil “crescer pra cima de mim”. Meu medo maior é a corrupção estrutural e como entrar no mundo da política me esquivando disso.

– Como a prostituição entrou na sua vida, se o dinheiro não era uma necessidade? 
AMARA – Fui visitar amigas travestis que moravam e trabalhavam num bairro de prostituição de Campinas. Elas ainda não tinham me visto depois da transição e ficaram chocadas: “Você era um boy tão belo e agora tá uma amapoa [gíria travesti para mulher] linda”. Me deram dicas, eu adorava estar com elas, criei vínculos afetivos. Mas 90% das travestis não apenas estão na prostituição, como numa prostituição precária. Me dava um certo desconforto de estar lá porque não é igual aos lugares em que transito e, ao mesmo tempo, elas me acolheram e ensinaram coisas preciosas. São pessoas que lutaram de um jeito que jamais sentirei na própria pele. Andava por lá e clientes me paravam, o tempo todo, para saber “o preço do programa”. Eu dizia que não era prostituta, só estava visitando amigas. “Como assim travesti que não é prostituta? Você vive do que então?”, perguntavam. Eu esfregava minha carteirinha da Unicamp na cara deles – hoje me sinto culpada por ter mostrado que eu era de outro lugar social. Mas me sentia desejada, estava carente, essas investidas mexeram comigo. Elas sugeriram que eu fizesse um extra por lá. Percebi uma cobrança velada: “Você vai ser uma de nós, né? Não vai ser sempre a turista, menina branquinha da universidade”. Ficava constrangida quando elas diziam que eu tinha “a cara da riqueza”. Queria viver a vida que elas levavam para entender, sentir na pele e poder lutar por melhores condições, até porque várias travestis precisaram sacrificar a própria vida para eu hoje poder ser minimamente aceita e poder existir como existo. Não foi por dinheiro, até hoje não foi.

– Você se prostituiu por militância? Para não se sentir privilegiada e blindada?
AMARA – Sim, a coisa foi ganhando esses contornos. Não era muito claro por que eu estava fazendo aquilo. Muitas amigas cortaram relações comigo porque não conseguiam lidar com a ideia de me prostituir. Percebi também que pra mim era mais fácil transar com desconhecidos, sem vínculo emocional, mais ou menos o que eu fazia no “banheirão” antes, só que sem cobrar. Fui para a rua na primeira noite e fiquei cinco horas sem nenhum cliente. O único que apareceu estava com o nariz sangrando, talvez cheirado, e queria pagar R$ 20 pelo “completo” [oral e anal]. Não aceitei. O preço era R$ 20 para sexo oral, R$ 30 para anal (ambos dentro do carro ou no “matinho”) e R$ 50 no quarto de uma pensão. Semanas mais tarde, estava “altinha” depois de uma festa, fui tentar de novo. E tive três clientes naquela noite. Foi excitante, senti muito prazer e me senti finalmente parte do grupo: “Nossa, achei o meu trabalho!”. Fazia programa a cada quinze dias.

– Foi aí que você criou o blog “E se eu fosse puta”?
AMARA – Antes da primeira experiência como prostituta. Conforme eu escrevia para o blog sobre os programas e estreitava os laços com o feminismo, fui enxergando as violências por que passava. Fiquei menos eufórica e mais crítica, analisando as sutilezas do machismo e da transfobia. Minhas amigas estão lá sofrendo a mesma coisa que eu sofro, mas ninguém se preocupa com a história delas – ao contrário de mim, universitária e classe média branca. Tenho a necessidade de passar por essas experiências para ser porta-voz do que elas vivem. Para que os outros saibam o que chamam de “vida fácil”, quando elas são expulsas de casa e da escola, quando lhes negam um emprego por serem travestis. Se eu falasse sobre prostituição apenas pelo que elas me contam, seria muito frágil e superficial: eu preciso viver, sentir na pele.

– Sua família sabe?
AMARA – Minha mãe sabe e sofreu muito, achou por muito tempo que tudo o que eu faço é para afrontá-la. Leu meu blog, eu inventei que era ficção, mas depois confessei. Agora que surgiu a oportunidade de publicar em livro textos do meu blog, ela está percebendo como a militância é importante na minha vida. Não é depravação, safadeza.

– Qual a sua opinião sobre a regulamentação da prostituição?
AMARA – A prostituição é um lugar que permite que a travesti exista quando a sociedade fecha as portas. Ao mesmo tempo, é o lugar que mais nos mata – a maioria das mortes de travesti acontece no exercício da profissão. Diante desse paradoxo, a urgência é lutar por uma prostituição que nos mate menos e nos permita viver em melhores condições. Se pagassem R$ 300 a hora, teríamos condições de comprar a nossa cidadania, teríamos condições de existir de maneira plena, mas não é essa a prostituição a que temos direito e sim a prostituição dos R$20, R$30 o programa, que mal nos paga o suficiente para sobreviver.   .

– Isso seria só uma redução de danos, não?
AMARA – Teríamos um lugar menos violento para trabalhar. Quando falam sobre o projeto de lei que regulamentaria a profissão, afirmam que seria legalizar a cafetinagem. Do que exatamente estamos falando? A pessoa prostituta poderia atuar em cooperativas ou de forma autônoma numa “casa”, sem vínculo empregatício. Essa “casa” nos ofereceria um combo de serviços: a segurança, a limpeza, a roupa de cama e banho, a água, a luz etc. Nós venderíamos nosso serviço lá e a casa poderia cobrar até 50% sobre o nosso faturamento. Ela nos ofereceria a estrutura, como um motel. É só essa cafetinagem que seria legalizada com a PL de Jean Wyllys, não aquela da exploração de mulheres e travestis.

– Não seria melhor lutar para que travestis sejam aceitas e reconhecidas a ponto de não acabarem na prostituição?
AMARA – As duas coisas podem andar juntas. O “Transcidadania” [projeto da prefeitura de São Paulo] oferece bolsas no valor de um salário mínimo para trans mais vulneráveis voltarem a estudar e terem outras oportunidades, mas sem exigir a saída da prostituição. Caso elas achem necessário, não consigam se bancar com esse salário, terão a mesma acolhida. As pessoas não optam por esse trabalho do sexo, acabam caindo nele por pressões de ordem financeira e social. E quanto menos se paga pelo serviço sexual, mais o cliente se sente dono do nosso corpo, o que nos deixa vulneráveis a todo tipo de violência. Eu trabalho só em Campinas, em média a cada duas semanas. Tentei uma vez em Santo Amaro, aqui em São Paulo, mas fui bastante hostilizada porque você precisa negociar o seu espaço antes – não é só chegar na rua.

– Você já foi violentada fisicamente enquanto se prostituía?
AMARA – É comum te tratarem de forma grosseira. Uma vez fui colocar a camisinha no cara para fazer sexo oral, ele quis sem e ofereceu mais vinte reais. Pra ele, minha vida vale essa migalha, tentam comprar a minha resistência. Falei que não havia grana que me fizesse chupá-lo sem camisinha. Ele forçou minha cabeça com tudo e me obrigou. No começo eu aguentava algumas coisas porque não queria parecer “mimada” diante das minhas amigas prostitutas. Hoje, se eu gritar de dentro de um carro no lugar onde atendemos, vai chover pedra em cima do cara. Em 29 anos vivendo com uma figura masculina, nunca tinha passado por um assédio. Um dia estava no metrô e um cara colou no meu ouvido e disse que queria me comer de quatro. Depois da minha transição, comecei a ter esse tipo de experiência cotidianamente. Passavam a mão na minha bunda e eu não sabia lidar com isso.

– Quem vai atrás das travestis prostitutas? 
AMARA – Em geral, homens que não estão com grana para pagar uma mulher cis [cisgênero são pessoas que se identificam com o gênero designado no nascimento; em outras palavras: nasceu com vagina e se reconhece mulher/feminina ou nasceu com pênis e se reconhece homem/masculino]. “Não tenho 80 reais, mas por vinte eu ganho um boquetinho da travesti”, pensam. Muitos têm desejo por travesti e não conseguem assumir claramente isso, então nos deixam apenas fazer sexo oral, não querem nos ver nuas nem nos tocam direito. Meus clientes são ativos, eu faço o papel passivo. Existem os clientes que querem ser passivos, mas são atendidos pelas minhas amigas. Às vezes são héteros e só se sentem à vontade com uma travesti para pedir um beijo grego [oral no ânus], um fio terra [dedo no ânus]. Casados que nos mandam tirar o batom para não manchar a cueca deles, que querem fazer sexo sem camisinha e não estão nem aí para a saúde das esposas. É de uma irresponsabilidade gigante. Não à toa está crescendo o número de mulheres hétero, casadas, monogâmicas e fiéis com HIV…

– Você namora e mora com uma mulher cis, certo?
AMARA – Sim, ela tem a minha idade e é professora de letras. Nos conhecemos num encontro sobre amor livre, relações não-monogâmicas.Começamos a namorar em dezembro, um mês depois estávamos morando juntas. A prostituição está entre os nossos acordos, continuo indo por militância – talvez se quisessem assumir a bucha por mim, digo, essa militância, eu focaria minha vida em outras coisas. Mas enquanto a prostituição for tabu, não esperem que eu largue essa vida.

**Este post foi originalmente publicado na coluna da Nath no Yahoo.

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