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Boa Noite, Cinderela

“Filha, não aceite bebida de estranhos”, meu pai dizia ao me deixar na porta da balada. Sempre achei lenda urbana essa coisa de gente que bota droga no copo dos outros. Nem sei dizer quantos drinques entornei de desconhecidos – ou permiti que fossem até o bar buscar pra mim, apenas por preguiça de atravessar a multidão da pista. No último domingo, durante uma aula sobre sexualidade e drogas na pós-graduação, um colega me mostrou como fui estúpida todo esse tempo. O professor falava dos efeitos do “Boa Noite, Cinderela” (BCN), uma substância sedativa e hipnótica que induz rapidamente ao sono – diluída em líquidos com o intuito de roubar ou estuprar a vítima. João sussurrou na minha direção: “Já fui vítima, mais de uma vez”. Numa delas, malaguetada, o BCN foi colocado num inocente copo d’água. O depoimento abaixo foi escrito por ele.

João Luiz Vieira*

Passei por dois BNC. Para os não-iniciados, Boa Noite Cinderela. Repito: dois. Estive duas vezes em casa diante de um psicopata, da morte, da dúvida, da culpa e da vergonha. Duplamente negociando com o mal e, por sorte, ele tentou me ferir quando a lança entortou. Das malas roubadas de mim, só levou o que é temporário: eletroeletrônicos. Nesta segunda vez posso dizer que, sim, ele turvou o que era límpido: a ideia que o estrangeiro, o outro, o que não sei, pode ser amigável. A verdade é que não temos mais garantia de nada. Quem é você que está me lendo? De onde vem e para onde vai e, especialmente, o que quer de mim?

Sempre digo que o medo inibe a coragem. Inimigos mortais que são. Digamos que o primeiro seja a razão, o segundo a emoção. Jogue umas gotas de álcool e a bomba está preparada para rasgar sua carne, moer seus ossos. Cair num BNC não é motivo de vergonha ou culpa, sentimentos que deixo para quem praticou o ato. Fui vítima, mas não me vitimizei, mesmo com o sangue sujo de veneno. Lidar com alguém que não tem empatia com o ser humano é muito difícil, é mais grave do que um embate com um animal faminto. Um psicopata tem outro tipo de fome, é uma alma com fastio de gente. Apesar de inteligente, não há como negar: ele não carrega no caráter um elemento que nos garante o princípio de civilidade, respeito.

Sou um homem ativo e racional, só que a dosagem de remédios que ele coloca na sua bebida – atenção puritano: pode ser água sem gás – o transforma numa criança de cinco anos. Você só obedece. Não questiona, não reage, é só sim o tempo inteiro. O pior de tudo isso é que não estou relativizando o sexo com desconhecido. Falo de amor. Não pelo psicopata, mas pela humanidade. Não saio de casa pensando em quem vou foder – simbolicamente falando -, mas aberto para novas oportunidades que a vida em comum podem me oferecer. Os dois psicopatas que me paralisaram não pensam assim. Eles simplesmente não acreditam no outro. E o outro, por acaso, fui eu. Poderia ser você, homem, mulher, forte, fraco, ativo, passivo, carente ou casado. Pouco importa, ele decide.

O ritual, nos dois casos, foi parecido. Eles se camuflam, infiltram-se na turma onde você está inserido. Parece penetra de festa de casamento, só que mais sedento que os outros convidados. Finge alegria para trazer o alvo mais vulnerável para perto. Contraditoriamente, o mais frágil pode aparentar ser o mais forte. A preocupação maior do bandido é descobrir a veia certa para enfiar a seringa. Não importa a dor alheia, o que interessa é garantir mais sangue. Não venha dizer que eu provoquei porque masoquista nunca fui. Acreditar no estranho é uma aposta no imprevisível e isso, repito, não tem a ver com sexo. A negociação não é com a carne, é com o de dentro.

Se você passar por um BNC, deixe registrado um Boletim de Ocorrência (BO) numa delegacia. Não vai dar em nada, falo por experiência própria, mas você dorme melhor acreditando que fez sua parte. No meu primeiro BO descobri que muitas mulheres de meia idade passam por situações parecidas. Enquanto jovens, bonitos e magros, estamos relativamente a salvo? Claro que não. Será que quando envelhecemos, viramos alvo de pessoas que podem, simplesmente, trocar gentileza por mentira? Por acreditar nisso, você pode perder mais que eletroeletrônicos. Perde chão. Se estou bem? Tenho meus dois rins.

*João Luiz Vieira é jornalista e idealizador do site de sexualidade Pau Pra Qualquer Obra.

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