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Além da esquina: por que uma costureira virou prostituta

Capa72dpiMuitos olhares alcançam a mulher da esquina sem enxergar a via extensa de sua vida, as ruas paralelas, os becos sem saída. O que escondem essas silhuetas anônimas tão expostas à libido, à piedade, ao repúdio?

Em 2008, escrevi o livro “Além da Esquina: histórias de mulheres que se prostituem em São Paulo” com Felipe Oda (aquele que se tornaria meu marido anos mais tarde). Era o nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na faculdade de jornalismo, que jamais foi publicado. Mas o que nos vimos, ouvimos e vivemos por causa dele nos transformaria profundamente – como repórteres e pessoas. Compartilho com vocês, malaguetada, um dos capítulos. Linette não só é real como ainda trabalha como garota de programa.

Capítulo: Linette

– Amor, tô cansada de lavar, passar, cozinhar, fazer faxina, costurar. Nunca te vejo. Vamos sair pra namorar?
– Já se olhou no espelho? Você está velha, nem um cachorro te quer! Se não está feliz, vá embora…, respondeu o marido.

O episódio deu linha para que Ana, 39 anos, começasse a costurar a mulher que não era. Pegou o tecido de sua vida e riscou um novo formato. Com uma agulha afiada de mágoa, a dona de casa da periferia da zona leste juntou a necessidade financeira à decepção amorosa. Lá estava o figurino pronto. Ana vestiu-se de Linette. E percebeu que o caimento ficara melhor do que havia planejado. Quase como uma segunda pele. Pudera. Linette, a garota de programa, lhe devolveu o prazer de se sentir desejada e rendeu um dinheiro que a costureira jamais imaginara. Logo ela: conservadora, recatada mãe de quatro filhos, casada pela segunda vez há 22 anos com um açougueiro. Mas ser a outra era tentação demais. “Em 2005, abri os classificados atrás de emprego como doméstica. Vi um anúncio para trabalhar em uma casa noturna. Duzentos reais por dia. Achei que era para garçonete e me candidatei.” Quando se deu conta de que o que se servia ali era algo muito mais íntimo, a destruída auto-estima de Ana falou mais alto.

A zona não seria tão exigente quanto o marido. No primeiro dia foram oito programas. O recorde, ela jura, foi de vinte e sete clientes em vinte e quatro horas. Então, não quis mais voltar para casa. Deixou os filhos com o marido – porque ao menos um bom pai ele era – e mandava o dinheiro do feijão. Feito isso, pendurou-se num cabide por dois anos: queria só andar de Linette. Morou em boates, privês e depois alugou um flat. Deslumbrou-se com a liberdade e com o lucro rápido. Até que seu celular tocou. A realidade de Ana estava chamando. “Que é? Enquanto eu cuidava das crianças, você falava que era mamão com açúcar!”. Marcos, enlouquecido com as tarefas cotidianas, pedia que a esposa voltasse. Mas sabia que ela não voltaria sozinha. Antes de sair de casa, a costureira havia sido flagrada ao telefone negociando o valor e o local de um atendimento. O homem teria que pisar no orgulho para dividir o teto com Ana e Linette. As duas coexistiam e não seria mais possível separá-las.

Para aceitar esta condição, Marcos tirou suas vantagens. “Ele começou a fazer contas e, por achar que eu ganhava dinheiro fácil, não queria trabalhar”. Sem querer, a atitude do marido contribuiu para o sucesso profissional de Linette. Se ele fazia corpo mole, ela trabalhava duro. Ficou tão conhecida e requisitada por seus atributos físicos que foi convidada pela produtora pornográfica Explícita a lançar seu primeiro longa-metragem: “Um Metro e Meio de Bunda”. Estima-se que cerca de mil cópias tenham sido vendidas – fora os números da pirataria. A performance com 1m26 de preferência nacional ainda pôde ser conferida em outras 22 fitas estrangeiras. A costureira ingressou em uma indústria que movimenta R$ 850 milhões anuais no Brasil (contra R$ 10 bilhões do mercado norte-americano) e produz cerca de mil vídeos por ano, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas do Mercado Erótico e Sensual.

Em um filme pornô, Linette ganha R$ 1.500 por uma hora em cena. Ana só atingiria essa quantia se ficasse sobre a máquina de costura dez horas diárias durante três meses. Tempo suficiente para produzir 18.600 camisetas, pelas quais recebe oito centavos por unidade. Cada camiseta é vendida nas ruas do Brás e Bom Retiro a, pelo menos, dez reais. “Perguntam se acho digno o que eu faço. Eu acho! Porque é terrível acordar quatro da manhã, pôr um ovo na marmita, ficar o dia inteiro numa firma pra ganhar R$ 300. Qual é mais fácil? Raciocina, pára pra pensar. Não tô falando que ser garota de programa é lindo, mas não estou fazendo nada criminoso”.

O que está fora dos parâmetros éticos de Ana é carregar um filho debaixo do braço para pedir esmola no semáforo. Ela acredita ser uma mãe melhor se prostituindo e camuflando os sacrifícios que enfrenta. A negra de 1m50 de altura e trajes tão discretos que a fazem parecer uma secretária mantém-se nos bastidores, atrás das cortinas. Enquanto isso, Linette experimenta o glamour dos holofotes.

– Ô, Ana… Um amigo meu lá do açougue disse que viu sua bunda no DVD.
– Ah, é? Fala pra ele que são cem reais a hora. E pra você, que dorme toda noite na cama comigo, são seiscentos.
– Você tá maluca!
– Se você não quiser, a gente se separa, não tem problema. Da zona eu não saio. Você que é maluco: tinha uma mulher que fazia tudo em casa e achou que isso não valia nada. Agora eu sou linda, tenho até grana pra ir ao cabeleireiro.

Ana estava vingada. Diz-se satisfeita porque Marcos a considerava uma broaca e agora tem ciúmes, fica bravo quando ela sai de Linette. “Não fiz nada que ele não merecesse”. A ex-costureira poderia ter sua independência e se desvencilhar do casamento falido, mas não o faz. “Ué, não é interessante. Não tenho para onde ir. Mulher pobre fica com o homem por causa de tijolos. Duro dizer isso…” Esse é o dilema de Ana: ela paga as contas, mas a última palavra vem do dono da casa. Normalmente, Marcos se limita a dizer “Onde você enfiou o dinheiro? Sei que ganhou mais”. Ganhou mesmo. E guardou para o futuro. Ana se previne por ter certeza que daqui a três anos Linette não consegue nem para o sal. “As garotas de programa têm um defeito: esquecem que vão envelhecer e essa grana toda vai fazer falta.” Da extrema pobreza que viveu na infância, quer distância. Para ela e para os filhos. Luta para que eles não precisem entrar no armário, como ela precisou quando criança, para se proteger da chuva que alagava o barraco na Vila Ema e fazia força para carregá-lo. E que nunca mais matem a fome com um pão seco doado pelo vizinho.

Naquela época da vida de Ana, a carência não era só de comida e de um lar estruturado. Chorou mais pelo descaso da mãe faxineira, que não a aceitava por ser a única negra entre os três irmãos. “Ela era branca e não gostava de preto. Era racista, me batia. Foi muito cruel comigo. Acho que se revoltou por ter engravidado aos catorze anos e descontou esse sofrimento em mim.” O pai não pôde defendê-la porque saiu de casa para morar com outro homem. A menina não demoraria a sair também. Aos dezesseis, foi obrigada a arrumar as malas. A mãe cismou que Ana havia se perdido com o namorado. “Eu perdôo todas as maldades dela. Era pura ignorância.” Virgem e sem meios para seu sustento, teve incentivo das cinco primas prostitutas, que a levaram para fazer strip nas casas noturnas. “Como eu era de menor, não podia fazer programa.” Linette ainda não estava nos planos de Ana. Pouco tempo mais tarde, ela casou apaixonada. Separou-se quatro anos depois por não agüentar o envolvimento do parceiro com as drogas.

Engravidou duas vezes no primeiro casamento. A primogênita já está noiva com 21 anos. Lara, dois anos mais nova, sumiu às cinco da tarde de um dia de 1996 que Ana não quer lembrar. Ela foi à delegacia quando percebeu que a filha não estava por perto, mas o “doutor” informou que só poderia ajudá-la após 24h do desaparecimento. Finalmente encontraram a menina. Morta em uma caixa de papelão. Estrangulada e estuprada aos sete anos. O inquérito foi arquivado. “Tinha uma vida feliz e nem sabia. Tive que juntar os cacos e tentar recomeçar.”

Marcos, o atual marido, representou a esperança de uma nova vida. Ele assumiu a filha de Ana e providenciou mais duas crianças: uma garota e um garoto, hoje com 12 e 9 anos. O segundo casamento, segundo ela, foi perdendo o encanto para a rotina. No início, a dona de casa fã da dupla sertaneja Bruno e Marrone cantarolava baixinho a música “Deixa”: Já não consigo entender, se quem amou pra valer diz que agora tanto faz! Que já não me quer mais… Agora parece mais conformada. “Quando ele tá a fim, lembra que eu existo. Dá aquele tapinha pra me chamar e depois vira de costas. Mas isso é vida de marido e mulher”.

Prazer, só fora de casa e eventualmente, quando Linette acaba se deixando envolver por um cliente. Nesses casos, diz, são dez minutos de ilusão. “Talvez eu nunca mais o veja. Não posso ir para casa e lembrar dele no dia seguinte”. Ana costurou firme o coração de Linette. E também lhe transferiu limites morais. Por dinheiro vale freqüentar uma casa de swing, atender mulheres e pedidos bizarros – como um cliente que se excita com o álbum de casamento dos pais. Mas gostar disso? De jeito nenhum!

– O cara leva a esposa para vê-la transando com vinte homens de uma vez. Acho estranho demais. Se existe inferno é aquilo lá! Também fico chocada quando um cara fala ‘me faça de privada’. E a primeira vez com mulher? Deus do Céu! Fiz igual vejo os homens fazerem. Credo, eu chegava a arrepiar de nojo. Topei porque mulher paga dobrado.
– Então é mais fácil ser atriz pornô?, perguntamos.
– Claro que não! O programa é rápido e você faz o que quer. É você quem controla o cliente e faz ele gozar logo. Não precisa fazer caras e bocas. A atriz pornô tem uma performance pra gravar. A rotina é bem mais intensa porque os atores são “grandes”, né? E eles não se envolvem, é como um boneco sendo manuseado.

Apesar de considerar o programa mais fácil, Linette afirma que a garota deve se impor para ser respeitada. Quanto mais barato, mais o cliente abusa: quer aproveitar até o último centavo. “A mulher vale o que ela cobra”. Duzentos reais é o preço pela companhia dela. Pelo menos é o que nos diz. No entanto, uma consulta ao GPGuia.Net (fórum criado por clientes para resenhar as prostitutas) indica o valor de cinqüenta. Não importa. Para Linette, se o homem paga é porque a quer muito. “Tem mulher que dá pra Deus e o mundo. É galinha do mesmo jeito que a puta. Pior: não está cobrando. Pra mim ela é burra, amiga. Ela vai embora de ônibus e eu, de táxi”.

O dinheiro que Linette traz para Ana significa tanto que enquanto o celular tocar, ela continuará se prostituindo e correndo os riscos da vida dupla. No final de 2007, seus cunhados compraram um DVD pirata de Linette. Reconheceram Ana, de fio dental e cinta-liga. Ela negou tudo. “Foi o maior bafão. Minha sogra disse que queria morrer preta no inferno se aquela não era eu com um negão dos EUA.” Insistiram até Ana admitir. As filhas, que viram a capa do filme, não a condenaram: “Mãe, a senhora é maravilhosa. Não está faltando nada pra gente”. Já o marido se fez de vítima para a família. Alegou que não sabia de nada e que há tempos dormiam em camas separadas.

Apenas a face atriz pornô de Linette havia sido desmascarada. Mesmo assim, Ana se arrepende apenas por não ter começado a se prostituir antes. “Sou mais feliz hoje. Se soubesse que minha vida seria isso, nunca teria saído da boate. Seria garota de programa dos dezesseis aos cinqüenta. Construí um castelo de areia que desmoronou. Achei que a felicidade era o casamento, um lar e uma família.” De tudo aquilo que a costureira modelou para seu destino, sobraram apenas retalhos. Linette é o avesso da colcha de retalhos de Ana. Está escondida do lado de dentro, mas faz parte do mesmo pano, divide a existência com a mesma mulher. Quando Ana percebeu a linha que as unia, foi Linette quem pegou toda culpa e angústia de ambas e deu o ponto final.

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Comentários
  • Com certeza uma história e tanto. Vou ler com calma…

    Gostaria entretanto de ler o TCC de vocês, se isso for possível – já que, como você diz, é só o primeiro capítulo.

    Grato,

    12 de março de 2014
  • Na, muito bom esse seu projeto de tcc hein?! Se apenas um dos capítulos têm uma história tão interessante, imagina o livro inteiro! Legal observar de um modo diferente a vida de alguém, (e não no sentido de bisbilhotar) observar as particularidades e entender melhor porque certas decisões são tomadas, antes de simplesmente julgar. Adorei o texto!
    Ps: admiro demais o seu trabalho! 😉

    12 de março de 2014
  • Nossa, adorei a historia. Gostaria de ler todo o TCC de vcs, pois, se só essa historia é interessante, imagina as outras :)

    12 de março de 2014
  • Interessantíssima história! Normalmente se vê apenas corpo como objeto e não se pensa a trajetória que levou aquela mulher àquela esquina. Terrível e incrível ao mesmo tempo ver como o amor, ou a total falta dele, consegue revirar a vida de uma mulher. Adoro o jeito como você escreve, torna tudo muito mais sensitivo. Você vai publicar? Deveria!

    12 de março de 2014
  • Esse trabalho merece muito ser publicado! Sério mesmo que nenhuma editora não se interessou em fazê-lo?

    13 de março de 2014
  • não pensem que é fácil sobreviver a esse mundo, tenho muito a fazer hoje estou me dedicando só a filmes pornôs fiz um CENTENA DE FILMES A MAIORIA PARA O EXTERIOR ….RECOMPENSA MINHA FILHA JA SE FORMOU …MONTEI UMA EMPRESA DE LINGERIE ….ESTOU AINDA LUTANDO ….FÁCIL NUNCA DESISTIR NUNCA HOJE ….. tenho saúde.amor do meus filhos …e o respeito deles ….. se querem saber filmes depois de um metro e meio de bunda 2 que foi meu terceiro filme pornô fiz festa das bunda, bumbum de ouro grande bunda brasil o primeiro piercing anal …orgier 7 etc …não me arrependo de nada faria tudo novamente para dar uma vida melhor a meus filhos e estou conseguindo ….se é o melhor caminho não sei ….para mim foi o que achei para fazer portanto …sou feliz …..

    15 de abril de 2014
  • inicio da semana de carnaval: deixei meu .not book ligado e não feixei o facebook.
    – ao acordar , toquei na tela.
    dei de cara com esta atriz em meu computador,fiquei abismado pelo fato de nunca ter visto.
    – envie uma msg . pedindo -lhe desculpas por não saber do que se tratava .
    -e não há conhecia e achei que era alguém me sacaneando ,pesquisei e acbei vendo que se tratava de uma atriz pornô .
    e aonde cheguei áte este saite ; susseso p/ela e nunca assisti qualquer vídeo pornô c /ela .

    20 de fevereiro de 2015
  • Obrigada pelo carinho todos que leem essa história conseguem intender me melhor antes de me julgarem eu gosto que leiam sobre mim bjs a todos linette thierno

    11 de março de 2015
  • Ainda continuo trabalhando .Não vou a intrevistas de tvs embora ja tive convite pois não quero me expor tanto tenho filhas e filhos embora eles saibam da minha profissão gostaria de não causar danos a vida deles pois a sociedade é preconceituosa

    2 de abril de 2015
  • Nossa, fiquei abismada! Gostei demais da Linette-Aninha e odiei demais o marido dela. E sei que tenho razão. Só queria que ela fosse embora, que montasse o resto da vida dela sozinha, com seus filhos, é claro. Também fiquei arrasada por imaginar que um casamento pode ser tão horroroso e triste, desolador e grotesco e sofrido desse jeito. E também faço coro com os outros, para ler o seu TCC, viu, Nathalia? Beijão

    5 de fevereiro de 2016
  • HOJE SOU DIVORCIADA EMBORA NADA TENHA MUDADO muito em minha vida os homens tem medo de se relacionar com uma atriz porno hoje ….estou focada na minha empresa …..mas ainda não rende o que o porno rende infelizmente o país que vivemos pagamos mais impostos do que gangamos dinheiro mas acredito que meus negocios ainda venham dar os frutos esperados .bjs a todos

    15 de março de 2016

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